Pela estrada plana, toque, toque, toque
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.
Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...
Toque, toque, toque, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!
Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!
Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...
Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!
Guerra Junqueiro: Os simples
(Este poema era uma das "lições" do meu livro da 4ª classe)
4 comentários:
e do meu também :)
E eu acrescento: do meu também!
De repente, lembrei-me da música da primeira estrofe... ou será imaginação minha?
[BEIJO] para as duas
um ar de explicação
música... pois! também me recordo da música, mas não creio que seja da que usa o dó, ré, mi, claves que situam as notas sejam breves, envergonhadamente semi, ou mesmo encolhidas em mínimas e semínimas. Do que me recordo (também) é da música única do poema, de cada verso e das palavras (já reparaste neste meu compasso ternário?)e que me fazia dançar quase literalmente. As pernitas podiam não mexer, mas a imaginação e as mãos (mais a jeito) mexiam a muito vapor...
Lembro-me muito bem de ir ler este poema, de o fruir (naquele tempo lá sabia eu o que era fruir...gostava e pronto!)...
Não quero exagerar, puxar por identificações a martelo ou especular demasiado, mas estou tentada, estou em crer, admito que este poema tão bem escrito, tão do meu mundo daquele tempo, foi fundador do meu actual gosto, consumo e produção (presunção e água benta cada um toma a que quer...) de poesia...
Eu também passei pelas páginas, desse livro... páginas 37 y 38... mas um fragmento, então! O que expões é completo.
Recordar é viver, e, mais ainda, se é lindo.
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