Dauge, B.
fragile beauty VI
(2007)2007
E se Obama fosse africano?*
Por Mia Couto
Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
- Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
- Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
- Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
- Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério.
Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?). i - Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas - tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
- Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.
Fique claro: existe excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte. - Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.
Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.
In Jornal "SAVANA" - 14 de Novembro de 2008
Miriam Makeba, malaika
* o texto chegou-me por e-mail. já o li noutros blogs. ainda assim insisto.
14 comentários:
Mdsol,
grande grande post! não pelo tamanho em cumprimento, mas pelo tamanho em razão e reflexão!
por acaso já havia pensado um pouco assim... e se fosse em Portugal, em Espanha,em qualquer país da por vezes hipócrita Europa... não pensei em África p'lo óbvio, que agora, lendo este texto , deixou de ser óbvio! Obrigada!
retenho
"A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa."
boa semana
um grande sorriso :)
fica bem
mariam
A legitimidade de um africano a falar. Não importa a cor. A cor não importa também, nem a origem, religião e tudo o mais que divide e separa, quando as pessoas são capazes de emocionarem-se com outros seres humanos a fazerem história, dando um passo à frente, um passo de esperança, em nome de todo a humanidade. O que vale?
...
..." as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão"....
Esperança tem sempre muito poder! E as pessoas ficaram impregnadas dela.
***
D I S C O R D O ! ! !
Nos USA aconteceu o mesmo exactamente que acontece em África, mas num grau muito mais evoluído.
Não terão sido os detentores do poder que colocaram Obama como presidente? Eles não falsificaram os resultados, mas quando cada eleitor deixava o seu voto não estaria condicionado por muitas “máquinas” que decidiram que para lavar um pouco a cara dos USA agora era preciso um figurante com “new look”? Quem “manda” nos USA? Não serão, por acaso, os poderes militares e financeiros, entre outros?
Os líderes americanos (e os europeus, e os outros todos) são como os africanos, mas muito mais polidos, cínicos, dissimulados, em suma, mais evoluídos; Eu, em Portugal, quando voto não estou a escolher (só) o Primeiro-ministro. Estou a escolher também quem vão ser os elementos dos conselhos de administração da Caixa, do BCP, da Brisa, da Lusoponte, da Mota-Engil e por aí fora. Estou a escolher o lugar dos políticos que vão ficar a dar a cara, a dizer que nos governam, e estou a escolher os lugares daqueles que nos governaram e agora vão colher os frutos das benesses que deram, enquanto governantes, aos homens do poder real (financeiro, industrial, etc).
Mas… VIVA A DEMOCRACIA.
Mesmo que tenha de ser interrompida durante seis meses para pôr Portugal na ordem…
áfrica é.
américa é.
muitas muitas questões
de forças e profundas heterogeneidades
memóricas
sociais
geográficas, culturais
e sim, outras tiranias, lado a lado ( algumas inomináveis.
no entanto não gosto do se
e se
e se se
( agora mesmo, não cegando e nunca mistificando, aceitar e festejar verdemente
~
Comecemos por Miriam Makeba. Mesmo quando usa uma língua que não entendemos é sempre uma bela canttora. Mas o que me interessa é que era uma grande mulher !
O texto : já o tinha lido noutro blog (salvo erro é de Mia Couto)e já o comentei. Em qualquer caso é um texto NECESSÁRIO. E discordo da discordância de 8 DISSE.Certamente não conhece bem nem África nem os E.U.A..
Insista.
Hoje não dá para sorrisos (mesmo gráficos... )
Um abraço José-Carlos
Caro 8, não é que não tenhas a tua razão (penso) mas esqueces que o Ser humano ainda pode fazer a diferença. Mulheres e homens podem fazer a diferença naquilo a que são chamados (não me refiro à algum super herói prestes a salvar o mundo).
Ainda bem que não precisamos depender de cataclismas naturais ou...de mercado (e outros mais)para sermos obrigados a mudar o que não está bem. Somos a 'chave da história', não concorda?
Gira a maneira como a ~pi coloca as coisas. Fez-me lembrar de "idéias verdes incolores dormem furiosamente." (Chomsky)
É, não é? Temos é de despertá-las, ou estarmos atent@s quando elas despertam... (E eu ando em grande luta para essa coisa da esperança não fazer de mim uma tola)
***
Sempre é muito perigoso receber "aplausos do falso lado" como dizemos em alemao. Esperemos que o unico que Obama tem em comun com esos fantoches de dictadores africanos que fazem a desgraca dos seus povos é uma parte da sua origem genetica.
Tambem acho extremamente perigosa esa desmesurada esperanca posto num homem. Ninguem poderia cumprir o que se espera dele e as pessoas vao cair de muito alto e nao há nada mais perigoso que tudo um exercito de pessoas provavelmente cruelmente decepcionadas que nao compreendenm que as suas expectativas nunca foram minimamente realistas.
É um texto magnífico e duríssimo do Mia couto!
E como ele conhece bem o seu continente...
Fizeste bem em colocar aqui o texto de Mia Couto. Já o conhecia e conheço bem a realidade de que ele fala e que tão bem como ele sabe traduz no sei artigo. A única coisa que eu acrescento é que as bandeiras da esperança em qualquer lugar do mundo já não podem nascer apenas num país ou mesmo num continente. Os corruptos dirigentes africanos não seriam tão corruptos se não tivessem uma "máquina" mundial chamada capitalismo a dar-lhes toda a cobertura. A pior coisa dos corruptos africanos é que para além de espoliarem os seus próprios povos e terras, ainda mandam as riquezas que assim conseguem para alimentarem negócios de alta finança que não fazem voltar para África se não uma parte insignificante do que de lá tiram.
E nunca me canso desse cantinho...
Mais uma vez alegre e encantada!
Obrigada por suas visitas!
Estou de volta...
Beijos doces e inspirações...
Sendo um texto conhecido não está demais que siga sendo divulgado. Talvez de tanto lidos possam servir de iniciativa para os que seguem aferrados a um passado sem hipóteses de progresso DEMOCRÁTICO.
:))))
Um grande abraço
ideias verdes
( olhos de ver de X múltiplos
verdes
de va ga ri nho
a
cor
dam
~
excelente reflexão...com música própria para o contexto.
Boa noite, Maria do Sol.
"Os corruptos dirigentes africanos não seriam tão corruptos se não tivessem uma "máquina" mundial chamada capitalismo a dar-lhes toda a cobertura..."
Seriam exactamente tão corruptos como são...poderiam é não durar tanto e roubar menos.
E muito destes corruptos que agora o são sob a "máquina do capitalismo" já o eram sob a "máquina" do marxismo-leninismo...
Eu sou profundamente anti-capitalista liberal e detesto a corrupção por muitas razões incluindo as de ordem puramente estética, mas desconfio muito do teor de algumas afirmações sobretudo quando são incorrectas perante as evidências factuais, sectárias pelas omissões que deliberadamente traduzem e condescendentes por razões ideológicas.
Se calhar também nisto não devo saber do que estou a falar...
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