08 janeiro, 2008

não, não é...

Não, não é cansaço

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento, um feriado passado num abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola de outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

Fernando Pessoa in Poemas de Álvaro de Campos, Ed. Imprensa nacional - Casa da Moeda, 287-288

imagem em: oz.stephan-brumme.com

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

sensações abstractas de vida concreta? uhummm.

(que desperdício de vida(s)!...)

Anónimo disse...

Foste buscar um pedaço das minhas memórias...

Este e outros poemas estiveram presentes no limiar das noites dos meus 15 anos e por aí!

Doentio - dizia a minha mãe.

Talvez... Mas que saudades eu tive da minha cama de "solteira"!...

O Álvaro de Campos iria detestar este comentário, certamente.
É que já passaram uns anos largos e eu afeiçoei-me muito mais ao Ricardo Reis...

Volúvel? Também.

Bj