06 janeiro, 2008

Luiz Pacheco: morreu, no hospital do Montijo, aos 82 anos

"Chamo-me Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco, ou só Luís Pacheco, se preferem. Tenho trinta e sete anos, casado, lisboeta, português. Estou na cama de uma camarata, a seis paus a dormida. É asseado, mas não recebo visitas. Também não me apetece fazer visitas. A Ninguém. Estou bastante só. Perdi muito. Perdi quase tudo.
Perdi mãe e perdi pai, que estão no cemitério de Bucelas. Perdi três filhos - a Maria Luísa, o João Miguel, o Fernando António -, que estão vivos mas me desprezam (e eu dou-lhes razão). Perdi amigos. Perdi Lisboa; a mulher, a Amada, nunca mais a vi. Perdi os meus livros todos! Perdi muito tempo, já. Se querem saber mais, perdi o gosto da virilidade; se querem saber tudo, perdi a honra. Roubei. Sou o que se chama, na mais profunda baixeza da palavra, um desgraçado. Sou e sei que sou.
Mas, alto lá! sou um tipo livre, intensamente livre, livre até ser libertino (que é uma forma real e corporal de liberdade), livre até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre em português.
Até aos trinta e sete anos, até há bem pouco tempo ainda, portanto, julguei que podia, era possível, ser livre salvar-me sozinho, no meio de gente que perdeu a força de ser (livre e sozinha), e já não quer (ou mui pouca quer) salvar-se de maneira nenhuma. Julgava isto, creiam, e joguei-me todo e joguei tudo nisto. Enganava-me. Estou arrependido. Fui duro, fui cruel, fui audaz, fui desumano. Fui pior, porque fui (muitas vezes) injusto e nem sei bem ao certo quando o fui. Fui, o que vulgarmente se chama um tipo bera, um sacana. Não peço que me perdoem. Não quero que me perdoem. Não quero que me perdoem nada. Aconteceu assim.
Eu para mim já não quero nada, não desejo nada. Tenho tido quase tudo que tenho querido, lutei para isso (talvez o merecesse). Agora já não quero nada, nada. Já tudo, tanto me faz; tanto faz.
Agora oiçam: tenho dois filhos pequenos .... "

Luiz Pacheco in Exercícios de Estilo , Ed. Estampa, pp.161/162

"bitaites" :
1) tenho dificuldade em compreender alguns exageros. por uma razão simples. coloco-me sempre a pergunta: e se todos fizessemos/fossemos assim? (temos
todos o mesmo direito, ou não?).
2) outra dificuldade: entender a liberdade sem o "outro". a tal liberdade desabitada.
3) neo-abjeccionistas há muitos. manifestam-se de formas diversas (mas nada sinceras como a da declaração apresentada), uns mais rebuscados, outros declaradamente xicos-espertos, outros, inexplicavelmente(?!), muito burros!


4 comentários:

Manuel Veiga disse...

excelentes "bitaites"...

sou reincindente em comentário que deixei por aí:

"Libertino à moda do Minho. como o sarrabulho. enfim, o que a terra dá..."

Anónimo disse...

Boa Noite, Maria.

Só quero deixar-te aqui um poema, cúmplice, do Torga (Inspecção - Diário XV)

Meu corpo, meu versátil senhorio,
Ora a estuar de vida, ora doente.
Meu corpo, meu dilema permanente,
Minha baça incerteza.
Meu corpo, pobre e única riqueza
Que levarei comigo
Quando partir.
Meu corpo, meu supremo desengano,
E meu gosto carnal de me sentir
Humano.

Bjs.

mdsol disse...

Brisaleve

:))

Anónimo disse...

Bem... Que raio de discurso, realmente.

Mesmo naquela altura, o homem tinha 37 anos!... Uma idadezinha para ter mais juizinho...

Mas, olha, durou até aos 83!...
Tendo em conta a esperança média de vida, mais uma vez, excedeu-se [isto é, do ponto de vista dele, "roubou" outra vez: o lugar a outros].

É visível que não sou fã do senhor.
Os teus "bitaites" não são alheios ao assunto. Curiosamente, pensei algo parecido, quando fizeram uma "retrospectiva" na televisão. Felizmente, não me demorei muito e fiz zapping, para não prolongar o tédio.

Bj

P.S.: Este não contém antigénios. É virtual... :)
Espero que a tosse passe rápido. Já dura há uns tempos, não é?