Imagine que um dia alguém se aproximava de si na rua e em vez de lhe perguntar polidamente as horas, ou aonde é que ficava a rua tal, lhe perguntava, com a maior naturalidade:
- Importa-se de me dizer se sabe pensar?
Imagine, com a maior realidade que puder, que essa pessoa lhe pedia que a ajudasse a pensar, exactamente com a mesma naturalidade com que lhe pediria lume ou troco de vinte escudos.
Imagine que lhe faziam essa pergunta assim, na rua, ou em qualquer outra circunstância, e tente avaliar pela sua surpresa ao recebê-la e pela resposta que eventualmente lhe daria, o que é que pensa a respeito da necessidade de saber pensar; se alguma vez teve dúvidas sobre se sabe ou não pensar, ou quantas vezes, e exactamente de que maneira, é que o problema se lhe pôs.
Pode achar estranho que essa pergunta lhe fosse posta assim, numa situação ocasional de rua. Seria de qualquer modo curioso saber ao certo porque é que seria estranho, e não é estranha a situação contrária, isto é, a situação real – em que nunca se lhe põe, nunca se lhe pôs, nunca se lhe porá.
Mas pode sossegadamente recolocar a mesma questão em relação aos jornais, às revistas, ao cinema, às reuniões com os seus amigos, à generalidade das universidades, à esmagadora maioria dos livros. Pode procurar activamente em todas as situações da vida ordinária – em todas as situações comuns ou invulgares da vida ordinária – qualquer ocorrência explícita dessa questão. Pode procurar activamente – mas procurará em vão.
Penso, logo desisto
Penso, logo desisto – dizia recentemente um jovem matemático. E desisto porque, obviamente não sei pensar.
Para além de um pequeno número de operações mais ou menos mecânicas; para além de uns resultados, mesmo criadores, que por vezes se conseguem, fica um mundo interminável de coisas perdidas na penumbra da incompreensão – e essas são, muito possivelmente, as mais importantes.
A Matemática ainda se compreende. A Física, a química, a generalidade das ciências ditas exactas, progridem, e em geral de uma forma surpreendente.
Mas quando se trata de compreender o homem; quando se trata de compreender a morte, a agressividade, o medo, o amor, quando se trata de nos compreendermos a nós próprios – vejo-me forçado a desistir.
Poucas pessoas terão alguma vez na vida perdido um minuto do seu sono a pôr, ou a tentar resolver, explicitamente, essa questão. Mas todas as pessoas perderam – e perdem continuamente – muito mais do que um minuto, uma hora ou uma noite inteira do seu sono, por não saberem pensar – por não quererem saber pensar.
Quero filhos, quero vodka, quero um ideal, quero uma casa no campo, quero um guru, quero um bife de lombo, quero a eternidade, quero um perfume francês – mas nunca ouvi da boca de ninguém, isto:
Quero saber pensar.
Penso, logo desisto.
Vai, disse a ave, porque as folhas estavam cheias de crianças,
Que se escondiam excitadamente escondendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
João de Sousa Monteiro (1978) in “ Tire a mãe da boca” pp. 33-35
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